Quarta-feira, 3 de Agosto de 2011
"Eu fui para converter os índios e eles me converteram"
 
    No domingo 24 de julho, à idade de 75 anos,  faleceu na capital do México o historiador e sacerdote jesuíta Jan de  Vos Van Gerven, perito em línguas indígenas e líder da teologia marxista  da libertação – contrária à doutrina católica – que influiu no  pensamento do falecido Bispo mexicano Samuel Ruiz.
      Conforme informa o jornal mexicano La  Jornada, Jan de Vos faleceu logo depois de uma cirurgia por uma severa  condição cardiovascular.
      Os restos do historiador e conhecedor das  línguas indígenas do México foram levados a San Cristóbal de las Casas,  estado de Chiapas. Nessa cidade ele residiu desde que chegou ao país em  1973.
      Entrevista a Jan de Vos:
 Eu tenho 70 anos e o coração inteiro e entregue,  mesmo com quatro "pontes de safena". Nasci em Antuérpia, cidade cinzenta  e monótona, e mudei para a luz da América. Fui jesuíta e sempre serei  apaixonado companheiro de Jesus. A revolução e uma mulher me tiraram dos  meus livros de história para a protagonizarmos juntos. A religião maia  não é inferior à nossa. 
    - Minha família era muito católica: meu pai era um deputado democrata  cristão e minha mãe rezava para ver um de seus nove filhos no altar. E  conseguiu: me tornei um jesuíta. 
   - Você deu aulas em uma escola? 
  Eu fui para a Colômbia como missionário. Eu comprei a melhor rede do  mundo. Fazem-nas na cadeia de Mérida, no Yucatan mexicano. Os  prisioneiros me venderamuma uma enorme rede de casal (me apercebi disso  na floresta, diante dos risos furtivos dos nativos).
   - Você ilumina seu rosto ao lembrar isso. 
   - Eu vi a luz! Da Bélgica maçante e monótona para a selva e o oceano do  Chocó. Na estação seca, subia os rios pela floresta até às aldeias  indígenas com dois pares de sapatos: um par seco em minha mochila,  enquanto o usava o outro. Eu estava tão feliz que me recusei a voltar.  Enquanto isso, Gustavo Gutierrez escreve sua Teologia da Libertação no  Peru. 
  - A América Latina fervia de indignação.
     - Eu fui para o México e descobri o mundo maia. Eles me mandaram para  converter, mas logo percebi que há 500 anos se estava tentando  evangelizar os Maya sem sucesso: aquilo não ele não fazia nenhum  sentido. 
   - Por quê? 
   Falhamos porque pensávamos que éramos superiores aos índios. Eu quis  conhecê-los antes de lhes impor qualquer coisa. Pratiquei a observação  participativa antropológica praticada com os Maya durante 30 anos e  estudei sua história: escrevi dez livros. 
  - Alguma conclusão? 
  - Os Maias acabaram me convertendo. 
  - Como? 
  -Me fizeram pensar. Para aprofundar a minha fé, eu decidi ir estudar teologia em Tübingen. Eu era um aluno de Ratzinger ... 
  -Ele agora tem muitos mais alunos.  
 Hoje Bento XVI -... ... E de Hans Kung. 
  - Foi hóspede dos opostos. 
  -Ratzinger, escrupuloso e disciplinado, ensinava uma disciplina do Neo-Tomismo. Ao contrário, Küng era um playboy da teologia. 
  - Popular? 
  -Para nosso escândalo vinha nos dar aula de teologia num Porsche  vermelho. Quando chegou Maio de 68, Kung aceita alegremente debate após debate,  mas Ratzinger se assustava muitíssimo com o assalto às aulas dos  estudantes. Eu decidi voltar para os meus Mayas. 
  - Você os viu com olhos diferentes?
   Reli a Bíblia. Descobri que a religiosidade deles era diferente, mas não  inferior à nossa. Nossa religião é baseada na revelação feita pelos  profetas e o último é Jesus de Nazaré, o filho de Deus para os cristãos,  que, finalmente, nos dá a divulgação completa.  
  - Não acho que é a única verdadeira? 
  - Antes de Moisés, todos nós vivíamos a mesma religiosidade de culto à  fertilidade e à terra que vivem os mayas, a fertilidade e a vida da  terra maya: comungam com a natureza, a revelação eterna e quotidiana.
   - Poderia se dizer que isso é idolatria e animismo. 
  - Nós todos fomos como eles. Moisés vai para Canaã e destroi a religião  da natureza. Aqui começa o divórcio entre as religiões dominantes e  nosso meio ambiente. 
  - Por quê? 
    - Moisés e seu povo não são agricultores, mas nômades, e Javé é um deus  tribal. Guia só o seu povo na batalha para dominar as outras tribos,  porque lhes ordenou: "repovoai a terra e submetei-a" 
  - Não não parece um lema do Greenpeace. 
  - Em vez disso, os maias resistiram a 500 anos de evangelização, porque  consideram a terra como sua mãe. Toda vez que semeiam, lhe pedem perdão  "Perdoa-nos, Mãe, devemos abrir-te para poder comer." E não entendem que  alguém possa comprar ou vender a terra sem trair a sua alma. Como é que  alguém pode comprar ou vender sua mãe? 
  -Não me faças dizer nomes... 
  - Eu me recuso a considerar a minha religiosidade superior à  religiosidade maya : aprender com eles! Eu vi, impotente, como  destruimos a floresta para a subjugar e explorar. 
  -Você é um relativista moral: condenado.  
  - Eu sou o que eu vivi. 
  - E, sendo assim, você ainda é cristão? 
  - Eu não sou um jesuíta, mas" um companheiro de Jesus". Eu acredito em  Jesus, sem intermediários e o vejo a nosso lado todos os dias: Jesus era  um desajustado, um pária, que era contra a religião estabelecida. Os  poderosos e os sacerdotes o condenaram à morte, mas Jesus vive hoje na  luta dos que sofrem: os despossuídos, os bem-aventuradosa que herdarão a  mãe-terra porque a amam e morrerão por ela. 
  - E você acabou sendo zapatistas. 
  -Pelo amor aos indígenas ... e a uma mulher. 
  - Muito jovem, não é? Que perigo! 
  - Ela era a filha do fundador do Fundo de Cultura Económica: uma intelectual comprometida e mulher revolucionária as 24 horas. 
  - Eu não sei se seria minha companheira ideal.  
  - Ufa! Não era fácil viver com ela! Mas agradeço a ela e à revolução  duas coisas: ter-me tirado do passado e ter-me arrancado do escritório.  Eu parei de escrever a história sozinho para a poder protagonizar com  ela. 
  - Como? 
  - A maioria dos zapatistas tinham sido catequizados por mim ou por meus companheiros...  
 - Vocês jesuítas eram um perigo. 
   -... Quando o comandante David pegou minha mão, docemente me lembrou que  ele foi meu aluno. Ele me pediu para escrever a história da Mayas,  "porque a nossa história é o fundamento da nossa dignidade." 
   - Um belo encargo...
    - Procurei patronos e o editei luxuosamente em quatro línguas maia e em  espanhol. Vendemos 10 mil: cada um ao preço de uma cerveja. Hoje o  chamam de "livro negro" pela cor das capas e o lêem com orgulho. A  revolução continua agora nos municípios: sem câmaras, mas mais do que  nunca perto do povo.
                       Tradução do Espanhol: João Tavares