terça-feira, 30 de agosto de 2011

O medo não pode ter tudo

O medo não pode ter tudo

Tantos fios atam a vítima de violência doméstica. Que dirá a família? Que dirão os vizinhos?

Ana Cristina Pereira, Jornalista do Público

Houve quem arregalasse os olhos e abanasse a cabeça, incrédulo. Mas era evidente que a violência há muito se infiltrara naquela família. Havia um senhor e uma serva. E a serva, às vezes, produzia frases duras: "Quero cortar o cabelo, aquele cachorro não deixa."

Fiquei com esta frase na cabeça ao visitá-la uma tarde, em Brighton, no Sul de Inglaterra, já lá vão uns doze anos. Lembro-me de fazer a viagem de regresso a Londres absorta. Que diabo era aquilo? O que a mantinha unida àquele homem? Porque não o deixava?

Tantos fios atam uma vítima de violência doméstica. Que dirá a família? Que dirão os vizinhos? Um casamento é para a vida. Cada um tem a sua cruz. Ele vai mudar. Ele não é sempre assim. Ele é o pai dos meus filhos. Vou mandar prendê-lo? Fugir para onde? Viver de quê? Que será dos meus filhos? E se ele vem atrás de mim? E se ele me mata?

No ano passado, a notícia chegou-me por telefone. Ele ameaçara-a e ela pegara nos filhos e saíra porta fora. Fora à esquadra apresentar queixa e instalara-se em casa dos pais. Sim: a situação alterara-se. Ela regressara à ilha, tinha emprego e retaguarda familiar. Celebrei a libertação dela com vinho e com queijo. E, como todos em redor, temi pela sua segurança.

Os familiares ouviam com espanto o relato do que fora aquele casamento de 17 anos. Alguns culpavam-se por de nada terem desconfiado - choravam com ela, choravam por ela. Todos pareciam querer apoiá-la. E ela bem precisava - ele recusava-se a dar um cêntimo aos filhos.

Há pouco, nova notícia. Decretado o divórcio, o Tribunal de São Vicente decidiu que ela e os miúdos têm direito de morar na casa construída pelo casal até o imóvel ser vendido. Eles pediram para ir. E ela quis fazer-lhes a vontade. Imaginei-o furioso. E tornei a temer pela segurança dela. Agora, soube que ele rugiu. E que ela e os miúdos recuaram.

Não sei quem foi o juiz que tomou esta decisão, mas gostaria de cumprimentá-lo neste 25 de Novembro, Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Por todo o país, mulheres fogem de casa desesperadas. Eles, os agressores, tendem a beneficiar dos bens do casal, enquanto elas, as vítimas, andam às aranhas, a pedir favores, com os filhos atrás. É preciso inverter isso. Se não pelas mulheres, pelas crianças.

Quantas terão ainda de mudar de escola, de se separar dos seus amigos, de perder as suas coisas? O medo não pode ter tudo - o medo já teve demasiado. Mas para o medo deixar de ter tudo é preciso o sistema garantir uma efectiva protecção às vítimas.