Porque é que Espanha quer o mar das Selvagens e Portugal não deixa?

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Carregue no infográfico para ampliar. (Infográfico FN/Nuno Reis Correia)
A polémica luso-espanhola sobre as ilhas Selvagens começou pelo envio por Espanha, a 5 de Julho de 2013, de uma declaração (nota verbal) sobre as Selvagens à Divisão para os Assuntos do Oceano e da Lei do Mar, das Nações Unidas.
Em causa está o estatuto das Selvagens, pedaços de terra a 163 milhas da ilha da Madeira e a 82 das Canárias. Portugal diz que são ilhas; Espanha, diz que são simples rochedos.
Com o estatuto de ilhas, as Selvagens prolongam a Zona Económica Exclusiva (ZEE) portuguesa a sul delas. Com o estatuto de rochedos, a ZEE espanhola ‘absorve’ as Selvagens e, para Portugal, à sua volta (12 milhas), fica apenas mar territorial português.
Espanha não contesta a soberania sobre as ilhas Selvagens, mas veio recordar que as fronteiras marítimas na zona estão em aberto.
Mas nada de confundir a extensão da plataforma continental, a ZEE em redor das Selvagens e o estatuto das próprias ilhas.
Espanha já tinha protestado noutra nota enviada às Nações Unidas, em 2009, quando Portugal apresentou a proposta de alargamento da plataforma, na Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da ONU. E diz que não aceita que as Selvagens tenham ZEE, a gerar se fossem ilhas, e que considera rochedos, só com direito a Mar Territorial.
À volta das Selvagens, o que está em causa não é a extensão da plataforma portuguesa (para todos os lados, para lá das 200 milhas). Em linha recta para sul, as ZEE dos dois países, independentemente de onde se traçará a linha entre elas, batem logo uma na outra. Pelo que não há nenhuma plataforma para alargar aí.
A questão de um conflito de interesses, devido a uma plataforma continental portuguesa gerada a partir das Selvagens, também não se põe para leste, em direcção à costa africana. As distâncias entre as Selvagens, as Canárias e a costa africana não deixam grande espaço para lá das 200 milhas. E a haver aí extensões da plataforma, a discussão será entre Espanha, que tem as Canárias mais perto da costa africana, e Marrocos.
Assim sendo, resta o alargamento da plataforma portuguesa do lado oeste da Madeira. E, sobre isto, a 6 de Setembro de 2013, Portugal respondeu a Espanha, dizendo que a plataforma continental portuguesa “a oeste do arquipélago da Madeira constitui o prolongamento natural do território emerso da ilha da Madeira e do território de Portugal Continental”.
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Carregue no infográfico para ampliar. (FN/Nuno Reis Correia)
Porquê a ‘guerra’ entre Portugal e Espanha? Que riquezas esconde as Selvagens?
Para já, ninguém sabe o que existe abaixo dos quatro mil metros de profundidade das águas à volta das Selvagens, ainda que se suspeite de jazidas de minérios, gás natural e dos valores naturais do mar. Mas há também quem recorde a lenda do pirata Kidd, que terá enterrado nas Selvagens um fabuloso tesouro pertencente à catedral de Lima, no Peru.
O que são ilhas?
“Ilhas” são porções de terra emersas, em geral de pequena área, podendo ter origem vulcânica, organogénica e sedimentar.
Podem ser baixas, barreiras, artificiais, gelos ou oceânicas e até os pequenos atóis são classificados de ilhas.
As Selvagens têm uma área de 2,5 km2. A Berlenga tem uma área de 0,9 kms2 e é considerada ilha. Ou seja, as Selvagens são Ilhas oceânicas: aquelas que se encontram em pleno oceano, distantes dos litorais continentais. São partes emersas de grandes cadeias de montanhas.
Para ter estatuto de ilha, segundo a Lei do Mar, um território tem de poder ter habitantes humanos e actividade económica. Portugal argumenta que as Selvagens são habitadas por vigilantes da natureza, que até um Presidente da República lá dormiu, e que houve, até aos anos de 1960, actividade económica baseada nas cagarras (aves marinhas), que alimentavam a população da Madeira. Só não são caçadas hoje, argumenta-se, porque as Selvagens são reserva natural desde 1971 (têm a maior colónia mundial de cagarras).
O que são rochedos?
“Os rochedos que, por si próprios, não se prestam à habitação humana ou à vida económica não devem ter zona económica exclusiva nem plataforma continental”. É este o teor do n.º 3 do artigo 121.º da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar.
Para que determinada formação rodeada de água deva ser considerada um rochedo e não uma ilha dever-se-á demonstrar que a mesma, por si só, não se presta à habitação humana ou à vida económica.
O facto de as Selvagens não serem habitadas não significa que devam, apenas por essa razão, ser consideradas rochedos, uma vez que o relevante não é serem habitadas ou terem actividade económica em concreto, mas sim haver, em abstracto, a susceptibilidade de serem habitadas e de se desenvolver uma actividade económica.
Ora, até terem sido transformadas em reserva natural, em 1971, desenvolvia-se uma actividade económica nas Selvagens (relativa à apanha de cagarras) e, por outro lado, há, pelo menos, dois países com dimensões mais pequenas (Vaticano e Mónaco) e várias ilhas de dimensões mais pequenas habitadas. Pelo que parece razoável concluir que as Selvagens são, de facto, ilhas e não meros rochedos.
A Convenção de Montego Bay, ratificado por Espanha e Portugal, estabelece as regras segundo as quais as Zonas Económicas Exclusivas (ZEE) de cada país ou Região devem ser atribuídas, considera as Selvagens como ilhas, e não rochedos, sob soberania portuguesa.
O que é a plataforma continental?
Vários países têm obtido dados sobre o fundo do mar, para determinar onde, em frente aos seus territórios, ocorre a transição da crosta continental (ou da crosta emersa das ilhas) para a crosta oceânica. No caso português a plataforma continental vai até às 200 milhas.
Mas as distâncias são relativas e dependem de outros factores como a profundidade. A nossa plataforma é extremamente profunda, com profundidade média de 3.700 metros. A do Mar do Norte, por exemplo, é de 30 metros.
O que é a extensão da plataforma continental?
Enquadrados pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Lei do Mar), as pesquisas oceânicas desenvolvidas pelos diversos países têm permitido que esses países reivindiquem jurisdição sobre o solo e subsolo do mar para lá das 200 milhas, desde que provem que a plataforma continental não acaba antes dessa distância e tem continuidade geológica. A plataforma pode alargar-se só a partir do limite máximo da ZEE; e esta última pode ir até às 200 milhas, dando, além do fundo do mar, jurisdição sobre a água.
A proposta portuguesa para extensão dos limites exteriores da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas prevê que Portugal ganhe mais de dois milhões de quilómetros quadrados, perfazendo um total de quase quatro milhões de quilómetros quadrados de área sob soberania nacional.
O que é a Zona Económica Exclusiva (ZEE)?
Se as Nações Unidas considerarem por válida a argumentação de Lisboa, a ZEE portuguesa passará de 200 milhas para 350 milhas.
Aliás, se as Selvagens forem consideradas ilhas, a ZEE será calculada no ponto médio entre as Selvagens e as Canárias; se forem consideradas rochedos, o ponto médio encontrar-se-á entre a ilha da Madeira e as Canárias.
Aliás, nesta última hipótese, poder-se-ia mesmo dar o caso de as Selvagens ficarem dentro da ZEE espanhola, protegidas apenas pelo seu mar territorial de 12 milhas.
O que há para decidir?
Com o mar das Selvagens, a questão a decidir é se há direito a uma ZEE em redor delas, a dividir entre Portugal e Espanha, caso sejam consideradas ilhas. Aí, a linha das ZEE passaria a meio das 82 milhas entre as Selvagens e as Canárias. Ou se há apenas direito, para Portugal, a um Mar Territorial, de 12 milhas, e uma Zona Contígua até às 24 milhas, sem lugar a uma ZEE – isto no caso de rochedos.
Como ilhas, empurrariam a ZEE portuguesa para sul. Como rochedos, a ZEE espanhola gerada desde as Canárias prolongar-se-ia até às Selvagens e até as passaria. A divisória das ZEE seria assim traçada entre as Canárias e a ilha da Madeira, separadas por 245 milhas. As Selvagens ficariam no meio da ZEE espanhola, rodeadas pelo Mar Territorial.
Quem vai decidir?
A Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da ONU. O assunto pode acabar no Tribunal Internacional do Direito do Mar, se a discussão incidir sobre a ZEE.
Quando se vai decidir?
A CLPC pode nem apreciar as propostas dos dois países. Mas Portugal espera que a apreciação da sua proposta de extensão da plataforma continental comece em 2016, não devendo estar concluída antes de 2017/18. Aliás, o processo poderá demorar pelo menos dois a três anos. Ou até prolongar-se por décadas.