segunda-feira, 16 de abril de 2012

Salada russa

Língua portuguesa

Salada de letras

8/04/2008 | Enviar | Imprimir | Comentários: 29 | A A A
Reconhecida como a terceira língua mais falada no ocidente, atrás apenas do inglês e do espanhol, o português ainda luta para ver suas duas ortografias oficiais unificadas. Juntar o dicionário usado no Brasil com os de outros sete países, no entanto, não parece ser uma tarefa fácil. Após quase duas décadas da assinatura do Acordo Ortográfico de 1990, em Lisboa, ainda não se sabe quando ele entrará em vigor. Mas, pelo menos, há uma certeza: três nações já ratificaram o documento, o que legitima a sua existência.
A história deste verdadeiro imbroglio teve origem há pouco menos de um século. Em 1911, uma reforma na maneira de escrever em Portugal deixou a ortografia deste país muito distante daquela definida pela pátria tupiniquim. Era o início de uma divisão que ainda tentou ser desfeita algumas vezes durante o século passado. Todas sem sucesso.
"A conversa (sobre um acordo comum) começou em 1945, mas o Congresso brasileiro não o ratificou. Em 1971, novo acordo entre Brasil e Portugal aproximou um pouco mais a ortografia dos dois países, suprimindo-se os acentos gráficos responsáveis por 70% das divergências entre as ortografias oficiais", conta Hélio Consolaro, editor do site Por Trás das Letras. Apenas no primeiro ano da década de 90 foi assinado, enfim, um consenso que pode colocar um ponto final nas disputas entre os vocabulários escritos na metrópole e em suas antigas colônias. Ele foi elaborado pelas Academias Brasileira de Letras e de Ciências de Lisboa.
Na ocasião, os mandatários de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe se reuniram na capital do representante europeu para colocar seus nomes no documento que unificaria, a partir de 1994, todos os dicionários. Para que o tão sonhado acordo entrasse em vigor no dia declarado, era preciso apenas que todos o ratificassem — o que não aconteceu. Depois de muitas idas e vindas, o "Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico" foi aprovado há exatos quatro anos. As atualizações foram significativas. Além da adesão do Timor Leste, passava a ser obrigatória apenas a confirmação de três países para tornar o texto legítimo, algo verificado em novembro de 2006.
Foi nesta data que o pequeno país São Tomé e Príncipe transformou o protocolo em tratado, já que Brasil e Cabo Verde haviam aceitado as novas determinações anteriormente. Ainda assim, era temerário colocar as mudanças em prática sem o consenso de Portugal, que estava em dúvida sobre sua posição. A indecisão parece ter se dissolvido no último dia 6 de março, quando o governo lusitano ratificou o acordo. Mas nada está definido. O parlamento ainda precisa aprovar a nova lei, fato que pode demorar longos meses.
Troca-troca
Ao largo das incertezas em relação a dificuldade de implantação do documento, as suas mudanças já estão definidas há muito tempo. O alfabeto brasileiro, por exemplo, passará a ter 26 letras com o acréscimo do K, Y e W, mas o vocabulário só será afetado em 0,45%. Pouco se comparado aos 1,6% da antiga metrópole. Embora as alterações sejam pequenas, o processo de aclimatação às novas normas não deverá ser simples. "O Brasil já não é mais um país de analfabetos. Fazer mudanças em países africanos é fácil, pois neles são poucas as pessoas alfabetizadas. No Brasil e em Portugal, o custo é grande para quase nada", assegura o editor de Por Trás das Letras.
A dificuldade pode diminuir com algumas dicas fundamentais. No Brasil, as paroxítonas terminadas em "o" duplo, por exemplo, perdem o seu acento circunflexo. Isso significa que palavras como "enjoo" ou "voo" serão escritas assim, sem qualquer sinal extra. O mesmo acontece na terceira pessoa do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos "crer", "dar", "ler", "ver" e seus decorrentes. Confuso? Na verdade, é bem simples: o circunflexo também cai em "creem", "deem" e companhia.
Outra alteração significativa, além do notório desaparecimento do trema, fica por conta do uso do hífen. No futuro, quando a segunda palavra começar com as letras "s" ou "r" e houver duplicação, é o fim do pequeno traço. Um exemplo é "antirreligioso" ou "antissemita". A separação entre dois elementos também some quando o prefixo terminar com uma vogal e o sufixo iniciar com outra, como em "extraescolar". A regra, é claro, tem suas exceções: caso a primeira palavra termine com "r", como "hiper", o hífen permanece. É o caso de "hiper-requintado".
Ainda em terras nacionais, o acento agudo vai sumir nos ditongos abertos "ei" e "oi" de palavras paroxítonas, como "heroica" e "assembleia". Já os nossos co-irmãos lusitanos deverão escrever "úmidos", ao invés de "humidos", e retirar todas as letras "c" e "p" em palavras nas quais não sejam pronunciadas. Ou seja: colocar no papel "adopção" ou "óptimo" estará absolutamente errado.
Daqui para frente
Em teoria, se tudo correr como o esperado pelos governos, as alterações começam a valer a partir de 1º de janeiro de 2012. "Haverá um prazo de três anos para adaptação às mudanças. Nesse período, as duas normas — a antiga e a nova — poderão ser usadas em vestibulares, concursos públicos e nos livros didáticos", explica Consolaro. O problema é que parece cedo para assegurar o cumprimento de todos os prazos.
João Guilherme Quental, professor de português e literatura da Escola Parque e um dos fundadores da Editora 34, é um dos que não acreditam no sucesso do acordo. Para ele, antes de se concentrar em datas, seria preciso começar a desenvolver o "vocabulário comum", o que ainda não está sendo feito. "A essa altura, acredito que ele acabe sendo unilateralmente posto em prática pelo Brasil, enquanto os demais países o adotarão segundo seus próprios interesses. Em Portugal, por exemplo, parece-me que a oposição é bem grande, o que o torna cada vez mais improvável".
Um dos principais argumentos de defesa do acordo é que o inglês torna-se, cada vez mais, um idioma universal e não tem dois registros internacionais. Seria, portanto, uma maneira de aumentar o número de cidadãos que dominam o português e de facilitar a vida de pessoas que viajam muito ao exterior e têm uma rotina cosmopolita. "A retirada de acentos, cedilha e til aproximaria ainda mais o Brasil da globalização. Essas coisas não existem em teclados de computadores estrangeiros", diz Consolaro. Além disso, as editoras poderão imprimir um maior número de exemplares de uma obra feito por um brasileiro, por exemplo, já que terá mercado em novos países. Esta alternativa poderá tornar os livros mais baratos.
As maiores interessadas no documento firmado há dezoito anos, em princípio, são mesmo as editoras. Afinal, serão elas as responsáveis por criar novos dicionários, livros e reimprimir os antigos na nova linguagem, o que gera boa margem de lucro. Como afirma João Guilherme Quental, entretanto, a economia do país não receberá maior impulso em virtude das mudanças, já que o número de leitores que necessitam de explicações unificadas para entender um texto escrito por um angolano é mínimo. "No momento,o acordo continua sendo levado adiante em grande parte por conta da inércia de nosso mundo acadêmico, da ganância de algumas editoras (que têm bastante a ganhar, obviamente) e do idealismo simplório de alguns lingüistas".
Como se vê, não será simples juntar os anseios e interesses de nações distintas e colocar em um livro para consulta. Mesmo assim, oficialmente, o novo consenso deve ser colocado em prática daqui a pouco mais de três anos — resta apenas saber por quem. Enquanto isso, ainda é tempo de aproveitar a norma atual para escrever "vôo" com acento e saber que não há qualquer erro de digitação.