BATALHA DOS GUARARAPES
Guararapes: O nosso Vietnã
Em duas batalhas travadas no século 17 nos pernambucanos montes Guararapes, os luso-brasileiros derrotaram os holandeses com táticas de guerrilha. Os conflitos mudaram o destino do país
por Rodrigo Cavalcante
De um lado, um exército organizado, com forte artilharia, munição e equipamentos para a guerra, liderados por uma superpotência. Do outro, soldados improvisados, em número muito inferior – menos de um terço da quantidade de combatentes dos inimigos. Lutavam descalços e sem camisa, munidos apenas de espadas e facões. Mas com uma vantagem: conheciam como ninguém a topografia do cenário de guerra. E acabaram impingindo uma derrota humilhante aos adversários.
Descrição da Guerra do Vietnã, em que os poderosos americanos foram massacrados pelos asiáticos? Nada disso. A luta acima ocorreu em meio à lama da região entre os montes e os mangues de Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife. Foram duas batalhas, que estão entre as mais decisivas para o futuro da América no século 17. Em abril de 1648 e em fevereiro de 1649, os conflitos que marcaram o destino do Brasil não pareciam, à primeira vista, muito justos. A República das Províncias Unidas dos Países Baixos, mais conhecida pelo nome de sua província mais importante, a Holanda (então a maior potência naval do planeta), enfrentou um exército formado por portugueses, mazombos (descendentes de portugueses nascidos no Brasil), índios e negros.
As derrotas sofridas pelos holandeses na região obrigariam, seis anos mais tarde, que eles abrissem mão de suas conquistas no Nordeste brasileiro. Por isso mesmo, não é exagero afirmar que foi ali, em Guararapes, que os habitantes da América portuguesa ajudaram a moldar aquilo que se tornaria a identidade brasileira. “Para os holandeses no século 17, Guararapes significou algo como a Guerra do Vietnã para os Estados Unidos no século 20 porque, com táticas de guerrilha mais apropriadas à região, os luso-brasileiros derrotaram um dos mais poderosos exércitos europeus”, diz o jornalista e historiador Leonardo Dantas da Silva, um dos maiores especialistas na época conhecida como Brasil Holandês, autor de Os Holandeses em Pernambuco.
Para entender os enfrentamentos que deram início ao fim da ocupação holandesa, é necessário analisar os sangrentos conflitos na Europa da época – dos quais a invasão holandesa ao Nordeste do Brasil foi um dos capítulos mais importantes.
Conflito Global
Assim como os Estados Unidos são atualmente a maior potência do mundo, o Império Espanhol era o todo-poderoso do século 16. Dominava territórios não apenas na Espanha como em diversos reinos que hoje integram a Itália e a França, assim como o território que hoje é dividido entre Bélgica, Holanda e Luxemburgo – em meados do século 16, esses três países faziam parte dos chamados Países Baixos Espanhóis. Em meio ao racha religioso causado pela Reforma Protestante, diversas regiões que trocaram o catolicismo pelas teses de Lutero e Calvino não viam mais razão para estarem submetidas aos católicos espanhóis. Foi o caso de sete províncias ao norte dos Países Baixos que, em 1579, fundaram a União de Utrecht – apesar de a Holanda ser apenas uma dessas províncias, era tão importante que o novo país levou seu nome. Como os espanhóis não estavam dispostos a perder a região, estratégica para as rotas de comércio na Europa, a guerra foi inevitável.
O conflito entre holandeses e espanhóis não tinha nada a ver com o Brasil. Isso até 1580. Logo no ano seguinte à União de Utrecht, o rei Filipe II da Espanha aproveitou-se do vácuo de poder em Portugal deixado pela morte de dom Sebastião para anexar o país aos seus domínios, formando a União Ibérica. A partir daí, o Brasil – e o precioso açúcar bruto produzido em seus engenhos e refinado pelos holandeses (leia abaixo) – passava a pertencer aos inimigos espanhóis. Foi então que os holandeses montaram duas espécies de multinacionais para tomar dos espanhóis-portugueses suas colônias: a Companhia das Índias Orientais, que encheu os cofres da Holanda controlando as possessões portuguesas no Oriente, e a Companhia das Índias Ocidentais, cuja missão era invadir as regiões produtoras de açúcar na América. Não fosse pelas duas batalhas em Guararapes, os holandeses poderiam ter chegado lá.
O primeiro destino da Companhia das Índias Ocidentais foi a Bahia. Em 1624, dezenas de navios com a bandeira tricolor holandesa invadiram a baía de Todos os Santos até tomarem a cidade de Salvador. Mas a ocupação não durou muito tempo: em 1625, uma esquadra luso-espanhola bem equipada conseguiu, com ajuda da população local, expulsar os holandeses da cidade. Cinco anos depois, a história seria diferente: ao tomarem a cidade de Olinda em 1630, os holandeses só sairiam do Nordeste em 1654. “Esses 24 anos de domínio estrangeiro comportaram na realidade mais de 16 anos de guerra”, escreveu o historiador Evaldo Cabral de Mello, autor de Olinda Restaurada.
Cabral divide a ocupação holandesa em três períodos. O primeiro vai de 1630 a 1637, quando a resistência local é obrigada a abandonar Pernambuco e os holandeses passam a controlar os territórios que vão do Ceará à foz do São Francisco (na divisa entre Alagoas e Sergipe). O segundo compreende os anos de 1637 a 1645, englobando principalmente o governo João Maurício de Nassau e o começo da revolta luso-brasileira (em 1640, Portugal voltou a ser independente da Espanha). O terceiro vai de 1645 a 1654 e marca a chamada Guerra de Restauração. Esta termina com a expulsão total dos holandeses. Foi exatamente nesse período que se deram as duas batalhas de Guararapes.
Guerrilha no mangue
Desde que Maurício de Nassau partira, em 1644, a situação dos holandeses no Brasil começou a definhar. Seus substitutos na Companhia das Índias Ocidentais não conseguiam controlar a crescente revolta dos habitantes locais contra o domínio estrangeiro com a mesma competência. A queda do preço do açúcar e as dívidas impagáveis com a Companhia acumuladas por produtores locais – além da certeza de que Portugal não teria condições de retomar a região pelo envio de uma esquadra, já que havia firmado uma trégua com os holandeses –, fizeram com que os descontentes decidissem agir por conta própria. Em 1645, organizaram um exército responsável por grandes vitórias, que encurralou os holandeses na cidade de Recife. Entre essas batalhas, a mais famosa foi a chamada Monte das Tabocas, decisiva para inverter o curso da história holandesa no Brasil. “Essa batalha abriu a campanha da Restauração e mostrou sua viabilidade militar, além de provocar a adesão de outras províncias”, diz o historiador militar e coronel Cláudio Moreira Bento. “É nesse momento que se define a estratégia de guerrilha que atingirá seu apogeu em Guararapes.”
O principal responsável por essa estratégia foi o militar de origem portuguesa Antônio Dias Cardoso, enviado da Bahia pelo governador-geral Antônio Telles da Silva. Conhecedor das técnicas de combate indígena, Dias Cardoso liderou no monte das Tabocas uma força de 1200 mazombos insurretos munidos de armas de fogo, foices, paus e flechas. As emboscadas derrotaram 1900 holandeses. A partir de então, ele seria apelidado de “mestre das emboscadas”. “Hoje, Dias Cardoso seria uma espécie de líder de forças especiais do Exército”, diz Cláudio Bento.
Acostumados a lutar em campo aberto na Europa, a artilharia pesada do Exército holandês mostrou-se vulnerável às novas táticas de guerrilha empregadas por seus adversários no Brasil. De maneira geral, cada companhia do Exército holandês formada por 500 homens era dividida em dois grupos: 300 piqueiros (carregavam os piques, lanças grandes no estilo medieval) que iam se revezando com o grupo de 200 mosqueteiros. Enquanto os mosqueteiros carregavam suas armas, os piqueiros assumiam a luta – e, quando os mosqueteiros estavam prontos para atirar, iam à frente dos piqueiros. “O problema é que esse tipo de luta não era adequado à vegetação local”, diz Dantas da Silva. “Em meio à mata e aos terrenos úmidos, não havia sequer raio de ação para a artilharia. A luta se dava mesmo na batalha corpo a corpo”. Foi com essa estratégia que, em abril de 1648, o exército luso-brasileiro derrotou os holandeses na primeira Batalha dos Guararapes.
A Primeira batalha
Cercados em Recife, os holandeses tinham obrigatoriamente de passar por Guararapes para recuperar suas antigas posições ao sul. De acordo com registros da época, ao anoitecer do dia 17 de abril o tenente-general Von Schkoppe comandou a saída das tropas holandesas para o sul da cidade na maior euforia e alarde. “A marcha dos holandeses foi acompanhada pelo som de trombetas e tambores, mais parecendo um desfile militar que uma marcha para o combate”, diz Cláudio Bento. “Com isso, eles queriam minar a moral dos combatentes locais, fazendo com que os luso-brasileiros acreditassem que não valia a pena lutar contra o poderoso exército holandês.”
Após a chegada de reforços da Holanda, os historiadores estimam que o exército holandês em Guararapes tivesse entre 4500 e 6000 homens. Já os brasileiros não passavam de 2500. Como então eles conseguiram uma vitória acachapante, que resultou em algo entre 500 e 900 mortes dos holandeses, incluindo dezenas de oficiais? A principal causa da vitória dos luso-brasileiros foi a decisão dos oficiais de lutar ao estilo local, atraindo os holandeses para o combate corpo-a-corpo em meio a passagens estreitas na mata, onde eram vítimas fáceis de emboscadas.
Além da estratégia de guerrilha, os exércitos formados no Brasil tinham muito mais razões para a luta que apenas as econômicas. “As dívidas à Companhia das Índias Ocidentais foram um fator importante para a rebelião, mas elas não seriam suficientes para motivar o ardor dos pernambucanos”, afirma Dantas da Silva. “Não podemos esquecer que se tratava também de uma guerra religiosa, já que o que estava em jogo era a disputa entre os católicos da terra contra os protestantes invasores”, diz o pesquisador, que discorda da tese de que houve liberdade religiosa em Pernambuco durante o governo holandês. “Havia, no máximo, alguma tolerância religiosa.”
O fato é que, dois dias depois de saírem do Recife, os holandeses depararam, em Guararapes, com algumas escaramuças montadas por um grupo de luso-brasileiros de 200 ou 300 homens. Chamados para a luta, eles não sabiam ainda que eram atraídos para uma grande emboscada em uma passagem estreita e com mangue entre montes na região, chamado de Boqueirão. Marchando com dificuldade com seus uniformes pesados, os holandeses foram vítimas de um ataque geral a espada das tropas luso-brasileiras. “O caos se estabeleceu e muitos holandeses, ao tentarem fugir, terminaram sendo abatidos a espada”, diz Cláudio Bento. Centenas de holandeses foram mortos em meio à região úmida pelos luso-brasileiros, cujo contingente de negros e índios estava habituado a se deslocar pelos alagados.
O resultado foi trágico para os holandeses. Estima-se que a batalha terminou com mais de 500 baixas (entre mortos e desaparecidos) e 500 feridos. Do lado do exército formado no Brasil, o número de baixas foi estimado em 80 mortes e 400 feridos. Como o exército holandês tinha quase o triplo de homens dos soldados locais, sua derrota foi ainda mais humilhante. Mas o pior ainda estava por vir.
A Segunda Batalha
Após a primeira batalha, os holandeses permaneceram sitiados no Recife, de onde só podiam sair pelo mar. Para desvencilharem-se da insultante posição, eles tentaram novamente sair por terra da cidade na noite do dia 17 para o dia 18 de fevereiro de 1649 – dessa vez, em silêncio. No dia 18, os luso-brasileiros já sabiam, contudo, que eles haviam marchado novamente para o sul. A idéia dos holandeses era chegar primeiro a Guararapes para se posicionarem com vantagem no inevitável confronto com as tropas luso-brasileiras. Mais uma vez, porém, a estratégia holandesa falhou. Suas tropas foram encurraladas, de novo, pelos soldados camuflados em Guararapes. Acabaram sendo obrigados a recuar em pânico para o Recife. Nessa ocasião, mais de mil homens do exército holandês foram mortos ou presos, contra apenas 40 mortos e 200 feridos das tropas luso-brasileiras.
Após a segunda batalha dos Guararapes, os comerciantes da Companhia das Índias Ocidentais pareciam ter finalmente percebido que não estavam lutando contra tropas portuguesas movidas puramente por razões econômicas. Eles descobriram que o povo lutava com um sentimento de patriotismo – incluindo os soldados negros, liderados por André Vidal Negreiros, e os indígenas, que tinham como líder o índio convertido ao catolicismo Felipe Camarão.
Enquanto a maioria do Exército holandês era recrutada em diversos pontos da Europa, os luso-brasileiros começaram a usar o termo “patriota” pela primeira vez no Brasil. Não é à toa que, após a expulsão definitiva dos holandeses, em 1654, a capitania de Pernambuco foi o epicentro de vários movimentos pela independência da região ocorridos nas décadas seguintes. Prevaleceu o sentimento de que o Nordeste holandês fora restaurado graças ao esforço de sua gente – e sem ajuda dos portugueses. Desde 1994, um decreto do ex-presidente Itamar Franco vinculou a data da Primeira Batalha de Guararapes ao Dia do Exército – marcando simbolicamente o conflito como a data de nascimento das nossas Forças Armadas.
Em duas batalhas travadas no século 17 nos pernambucanos montes Guararapes, os luso-brasileiros derrotaram os holandeses com táticas de guerrilha. Os conflitos mudaram o destino do país
por Rodrigo Cavalcante
De um lado, um exército organizado, com forte artilharia, munição e equipamentos para a guerra, liderados por uma superpotência. Do outro, soldados improvisados, em número muito inferior – menos de um terço da quantidade de combatentes dos inimigos. Lutavam descalços e sem camisa, munidos apenas de espadas e facões. Mas com uma vantagem: conheciam como ninguém a topografia do cenário de guerra. E acabaram impingindo uma derrota humilhante aos adversários.
Descrição da Guerra do Vietnã, em que os poderosos americanos foram massacrados pelos asiáticos? Nada disso. A luta acima ocorreu em meio à lama da região entre os montes e os mangues de Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife. Foram duas batalhas, que estão entre as mais decisivas para o futuro da América no século 17. Em abril de 1648 e em fevereiro de 1649, os conflitos que marcaram o destino do Brasil não pareciam, à primeira vista, muito justos. A República das Províncias Unidas dos Países Baixos, mais conhecida pelo nome de sua província mais importante, a Holanda (então a maior potência naval do planeta), enfrentou um exército formado por portugueses, mazombos (descendentes de portugueses nascidos no Brasil), índios e negros.
As derrotas sofridas pelos holandeses na região obrigariam, seis anos mais tarde, que eles abrissem mão de suas conquistas no Nordeste brasileiro. Por isso mesmo, não é exagero afirmar que foi ali, em Guararapes, que os habitantes da América portuguesa ajudaram a moldar aquilo que se tornaria a identidade brasileira. “Para os holandeses no século 17, Guararapes significou algo como a Guerra do Vietnã para os Estados Unidos no século 20 porque, com táticas de guerrilha mais apropriadas à região, os luso-brasileiros derrotaram um dos mais poderosos exércitos europeus”, diz o jornalista e historiador Leonardo Dantas da Silva, um dos maiores especialistas na época conhecida como Brasil Holandês, autor de Os Holandeses em Pernambuco.
Para entender os enfrentamentos que deram início ao fim da ocupação holandesa, é necessário analisar os sangrentos conflitos na Europa da época – dos quais a invasão holandesa ao Nordeste do Brasil foi um dos capítulos mais importantes.
Conflito Global
Assim como os Estados Unidos são atualmente a maior potência do mundo, o Império Espanhol era o todo-poderoso do século 16. Dominava territórios não apenas na Espanha como em diversos reinos que hoje integram a Itália e a França, assim como o território que hoje é dividido entre Bélgica, Holanda e Luxemburgo – em meados do século 16, esses três países faziam parte dos chamados Países Baixos Espanhóis. Em meio ao racha religioso causado pela Reforma Protestante, diversas regiões que trocaram o catolicismo pelas teses de Lutero e Calvino não viam mais razão para estarem submetidas aos católicos espanhóis. Foi o caso de sete províncias ao norte dos Países Baixos que, em 1579, fundaram a União de Utrecht – apesar de a Holanda ser apenas uma dessas províncias, era tão importante que o novo país levou seu nome. Como os espanhóis não estavam dispostos a perder a região, estratégica para as rotas de comércio na Europa, a guerra foi inevitável.
O conflito entre holandeses e espanhóis não tinha nada a ver com o Brasil. Isso até 1580. Logo no ano seguinte à União de Utrecht, o rei Filipe II da Espanha aproveitou-se do vácuo de poder em Portugal deixado pela morte de dom Sebastião para anexar o país aos seus domínios, formando a União Ibérica. A partir daí, o Brasil – e o precioso açúcar bruto produzido em seus engenhos e refinado pelos holandeses (leia abaixo) – passava a pertencer aos inimigos espanhóis. Foi então que os holandeses montaram duas espécies de multinacionais para tomar dos espanhóis-portugueses suas colônias: a Companhia das Índias Orientais, que encheu os cofres da Holanda controlando as possessões portuguesas no Oriente, e a Companhia das Índias Ocidentais, cuja missão era invadir as regiões produtoras de açúcar na América. Não fosse pelas duas batalhas em Guararapes, os holandeses poderiam ter chegado lá.
O primeiro destino da Companhia das Índias Ocidentais foi a Bahia. Em 1624, dezenas de navios com a bandeira tricolor holandesa invadiram a baía de Todos os Santos até tomarem a cidade de Salvador. Mas a ocupação não durou muito tempo: em 1625, uma esquadra luso-espanhola bem equipada conseguiu, com ajuda da população local, expulsar os holandeses da cidade. Cinco anos depois, a história seria diferente: ao tomarem a cidade de Olinda em 1630, os holandeses só sairiam do Nordeste em 1654. “Esses 24 anos de domínio estrangeiro comportaram na realidade mais de 16 anos de guerra”, escreveu o historiador Evaldo Cabral de Mello, autor de Olinda Restaurada.
Cabral divide a ocupação holandesa em três períodos. O primeiro vai de 1630 a 1637, quando a resistência local é obrigada a abandonar Pernambuco e os holandeses passam a controlar os territórios que vão do Ceará à foz do São Francisco (na divisa entre Alagoas e Sergipe). O segundo compreende os anos de 1637 a 1645, englobando principalmente o governo João Maurício de Nassau e o começo da revolta luso-brasileira (em 1640, Portugal voltou a ser independente da Espanha). O terceiro vai de 1645 a 1654 e marca a chamada Guerra de Restauração. Esta termina com a expulsão total dos holandeses. Foi exatamente nesse período que se deram as duas batalhas de Guararapes.
Guerrilha no mangue
Desde que Maurício de Nassau partira, em 1644, a situação dos holandeses no Brasil começou a definhar. Seus substitutos na Companhia das Índias Ocidentais não conseguiam controlar a crescente revolta dos habitantes locais contra o domínio estrangeiro com a mesma competência. A queda do preço do açúcar e as dívidas impagáveis com a Companhia acumuladas por produtores locais – além da certeza de que Portugal não teria condições de retomar a região pelo envio de uma esquadra, já que havia firmado uma trégua com os holandeses –, fizeram com que os descontentes decidissem agir por conta própria. Em 1645, organizaram um exército responsável por grandes vitórias, que encurralou os holandeses na cidade de Recife. Entre essas batalhas, a mais famosa foi a chamada Monte das Tabocas, decisiva para inverter o curso da história holandesa no Brasil. “Essa batalha abriu a campanha da Restauração e mostrou sua viabilidade militar, além de provocar a adesão de outras províncias”, diz o historiador militar e coronel Cláudio Moreira Bento. “É nesse momento que se define a estratégia de guerrilha que atingirá seu apogeu em Guararapes.”
O principal responsável por essa estratégia foi o militar de origem portuguesa Antônio Dias Cardoso, enviado da Bahia pelo governador-geral Antônio Telles da Silva. Conhecedor das técnicas de combate indígena, Dias Cardoso liderou no monte das Tabocas uma força de 1200 mazombos insurretos munidos de armas de fogo, foices, paus e flechas. As emboscadas derrotaram 1900 holandeses. A partir de então, ele seria apelidado de “mestre das emboscadas”. “Hoje, Dias Cardoso seria uma espécie de líder de forças especiais do Exército”, diz Cláudio Bento.
Acostumados a lutar em campo aberto na Europa, a artilharia pesada do Exército holandês mostrou-se vulnerável às novas táticas de guerrilha empregadas por seus adversários no Brasil. De maneira geral, cada companhia do Exército holandês formada por 500 homens era dividida em dois grupos: 300 piqueiros (carregavam os piques, lanças grandes no estilo medieval) que iam se revezando com o grupo de 200 mosqueteiros. Enquanto os mosqueteiros carregavam suas armas, os piqueiros assumiam a luta – e, quando os mosqueteiros estavam prontos para atirar, iam à frente dos piqueiros. “O problema é que esse tipo de luta não era adequado à vegetação local”, diz Dantas da Silva. “Em meio à mata e aos terrenos úmidos, não havia sequer raio de ação para a artilharia. A luta se dava mesmo na batalha corpo a corpo”. Foi com essa estratégia que, em abril de 1648, o exército luso-brasileiro derrotou os holandeses na primeira Batalha dos Guararapes.
A Primeira batalha
Cercados em Recife, os holandeses tinham obrigatoriamente de passar por Guararapes para recuperar suas antigas posições ao sul. De acordo com registros da época, ao anoitecer do dia 17 de abril o tenente-general Von Schkoppe comandou a saída das tropas holandesas para o sul da cidade na maior euforia e alarde. “A marcha dos holandeses foi acompanhada pelo som de trombetas e tambores, mais parecendo um desfile militar que uma marcha para o combate”, diz Cláudio Bento. “Com isso, eles queriam minar a moral dos combatentes locais, fazendo com que os luso-brasileiros acreditassem que não valia a pena lutar contra o poderoso exército holandês.”
Após a chegada de reforços da Holanda, os historiadores estimam que o exército holandês em Guararapes tivesse entre 4500 e 6000 homens. Já os brasileiros não passavam de 2500. Como então eles conseguiram uma vitória acachapante, que resultou em algo entre 500 e 900 mortes dos holandeses, incluindo dezenas de oficiais? A principal causa da vitória dos luso-brasileiros foi a decisão dos oficiais de lutar ao estilo local, atraindo os holandeses para o combate corpo-a-corpo em meio a passagens estreitas na mata, onde eram vítimas fáceis de emboscadas.
Além da estratégia de guerrilha, os exércitos formados no Brasil tinham muito mais razões para a luta que apenas as econômicas. “As dívidas à Companhia das Índias Ocidentais foram um fator importante para a rebelião, mas elas não seriam suficientes para motivar o ardor dos pernambucanos”, afirma Dantas da Silva. “Não podemos esquecer que se tratava também de uma guerra religiosa, já que o que estava em jogo era a disputa entre os católicos da terra contra os protestantes invasores”, diz o pesquisador, que discorda da tese de que houve liberdade religiosa em Pernambuco durante o governo holandês. “Havia, no máximo, alguma tolerância religiosa.”
O fato é que, dois dias depois de saírem do Recife, os holandeses depararam, em Guararapes, com algumas escaramuças montadas por um grupo de luso-brasileiros de 200 ou 300 homens. Chamados para a luta, eles não sabiam ainda que eram atraídos para uma grande emboscada em uma passagem estreita e com mangue entre montes na região, chamado de Boqueirão. Marchando com dificuldade com seus uniformes pesados, os holandeses foram vítimas de um ataque geral a espada das tropas luso-brasileiras. “O caos se estabeleceu e muitos holandeses, ao tentarem fugir, terminaram sendo abatidos a espada”, diz Cláudio Bento. Centenas de holandeses foram mortos em meio à região úmida pelos luso-brasileiros, cujo contingente de negros e índios estava habituado a se deslocar pelos alagados.
O resultado foi trágico para os holandeses. Estima-se que a batalha terminou com mais de 500 baixas (entre mortos e desaparecidos) e 500 feridos. Do lado do exército formado no Brasil, o número de baixas foi estimado em 80 mortes e 400 feridos. Como o exército holandês tinha quase o triplo de homens dos soldados locais, sua derrota foi ainda mais humilhante. Mas o pior ainda estava por vir.
A Segunda Batalha
Após a primeira batalha, os holandeses permaneceram sitiados no Recife, de onde só podiam sair pelo mar. Para desvencilharem-se da insultante posição, eles tentaram novamente sair por terra da cidade na noite do dia 17 para o dia 18 de fevereiro de 1649 – dessa vez, em silêncio. No dia 18, os luso-brasileiros já sabiam, contudo, que eles haviam marchado novamente para o sul. A idéia dos holandeses era chegar primeiro a Guararapes para se posicionarem com vantagem no inevitável confronto com as tropas luso-brasileiras. Mais uma vez, porém, a estratégia holandesa falhou. Suas tropas foram encurraladas, de novo, pelos soldados camuflados em Guararapes. Acabaram sendo obrigados a recuar em pânico para o Recife. Nessa ocasião, mais de mil homens do exército holandês foram mortos ou presos, contra apenas 40 mortos e 200 feridos das tropas luso-brasileiras.
Após a segunda batalha dos Guararapes, os comerciantes da Companhia das Índias Ocidentais pareciam ter finalmente percebido que não estavam lutando contra tropas portuguesas movidas puramente por razões econômicas. Eles descobriram que o povo lutava com um sentimento de patriotismo – incluindo os soldados negros, liderados por André Vidal Negreiros, e os indígenas, que tinham como líder o índio convertido ao catolicismo Felipe Camarão.
Enquanto a maioria do Exército holandês era recrutada em diversos pontos da Europa, os luso-brasileiros começaram a usar o termo “patriota” pela primeira vez no Brasil. Não é à toa que, após a expulsão definitiva dos holandeses, em 1654, a capitania de Pernambuco foi o epicentro de vários movimentos pela independência da região ocorridos nas décadas seguintes. Prevaleceu o sentimento de que o Nordeste holandês fora restaurado graças ao esforço de sua gente – e sem ajuda dos portugueses. Desde 1994, um decreto do ex-presidente Itamar Franco vinculou a data da Primeira Batalha de Guararapes ao Dia do Exército – marcando simbolicamente o conflito como a data de nascimento das nossas Forças Armadas.
Economia doce
Holandeses tornaram-se experts no negócio do açúcar
Os holandeses tiveram uma participação importantíssima na primeira atividade econômica organizada do Brasil – e acabaram sendo os principais beneficiados no processo. Logo no início da colonização, os portugueses escolheram plantar cana-de-açúcar por aqui para efetivar a posse da terra e, claro, levar lucro à metrópole. As primeiras mudas foram trazidas em 1532 e os engenhos multiplicaram-se rapidamente – em 1610, já eram 400, a maior parte no litoral de Pernambuco e da Bahia, que ocupavam posição estratégica para o escoamento do açúcar. A produção era toda voltada para exportação. Na Europa, a população mudava seus hábitos e começava a adoçar alimentos com açúcar em vez de mel. Como os custos para a produção eram altos para os portugueses, os holandeses é que financiaram a montagem das moendas e a compra dos escravos e assumiram o refino, o transporte e a negociação do nosso açúcar. Após sua expulsão daqui, os holandeses, que já detinham a tecnologia da produção do açúcar, foram para as Antilhas desenvolver o negócio por lá. O Brasil perdera o monopólio e ganhara um rival na produção do açúcar. Assim, o preço do açúcar, em meados do século 18 e durante o 19, caiu pela metade.
Quanto vale?
Nordeste voltou a ser brasileiro por 63 toneladas de ouro
Apesar de batalhas como as de Guararapes terem sido decisivas para expulsar os holandeses do Brasil, Portugal teve que negociar muito com a Holanda para obter a garantia de que o Nordeste brasileiro seria respeitado como colônia portuguesa. Em O Negócio do Brasil, o historiador Evaldo Cabral de Mello revela que, para que o Nordeste não fosse alvo novamente da Companhia das Índias Ocidentais, a coroa lusa teve que desembolsar 4 milhões de cruzados para os cofres holandeses, o equivalente, na época, a 63 toneladas de ouro – ou toda a receita da alfândega portuguesa em um ano inteiro. Ou seja: na prática, o Nordeste foi praticamente comprado de volta por Portugal. Mas a transação da Companhia das Índias Ocidentais que ficaria mais famosa, contudo, seria a venda de um entreposto comercial na América do Norte chamado Nova Amsterdã. Após a retomada do Nordeste pelos portugueses, esse entreposto foi o destino natural de muitos negociantes expulsos de Pernambuco – inclusive dos judeus que haviam se estabelecido no atual centro do Recife (onde foi construída a primeira sinagoga daqui, no século 16). Após vender o entreposto de Nova Amsterdã para os ingleses, o local seria batizado com o seu nome atual, Nova York.
Saiba mais
Livro
Olinda Restaurada – Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1645, Evaldo Cabral de Mello, Topbooks, 1998
Aborda as vertentes econômica, política, social e militar do período da ocupação holandesa.
Holandeses tornaram-se experts no negócio do açúcar
Os holandeses tiveram uma participação importantíssima na primeira atividade econômica organizada do Brasil – e acabaram sendo os principais beneficiados no processo. Logo no início da colonização, os portugueses escolheram plantar cana-de-açúcar por aqui para efetivar a posse da terra e, claro, levar lucro à metrópole. As primeiras mudas foram trazidas em 1532 e os engenhos multiplicaram-se rapidamente – em 1610, já eram 400, a maior parte no litoral de Pernambuco e da Bahia, que ocupavam posição estratégica para o escoamento do açúcar. A produção era toda voltada para exportação. Na Europa, a população mudava seus hábitos e começava a adoçar alimentos com açúcar em vez de mel. Como os custos para a produção eram altos para os portugueses, os holandeses é que financiaram a montagem das moendas e a compra dos escravos e assumiram o refino, o transporte e a negociação do nosso açúcar. Após sua expulsão daqui, os holandeses, que já detinham a tecnologia da produção do açúcar, foram para as Antilhas desenvolver o negócio por lá. O Brasil perdera o monopólio e ganhara um rival na produção do açúcar. Assim, o preço do açúcar, em meados do século 18 e durante o 19, caiu pela metade.
Quanto vale?
Nordeste voltou a ser brasileiro por 63 toneladas de ouro
Apesar de batalhas como as de Guararapes terem sido decisivas para expulsar os holandeses do Brasil, Portugal teve que negociar muito com a Holanda para obter a garantia de que o Nordeste brasileiro seria respeitado como colônia portuguesa. Em O Negócio do Brasil, o historiador Evaldo Cabral de Mello revela que, para que o Nordeste não fosse alvo novamente da Companhia das Índias Ocidentais, a coroa lusa teve que desembolsar 4 milhões de cruzados para os cofres holandeses, o equivalente, na época, a 63 toneladas de ouro – ou toda a receita da alfândega portuguesa em um ano inteiro. Ou seja: na prática, o Nordeste foi praticamente comprado de volta por Portugal. Mas a transação da Companhia das Índias Ocidentais que ficaria mais famosa, contudo, seria a venda de um entreposto comercial na América do Norte chamado Nova Amsterdã. Após a retomada do Nordeste pelos portugueses, esse entreposto foi o destino natural de muitos negociantes expulsos de Pernambuco – inclusive dos judeus que haviam se estabelecido no atual centro do Recife (onde foi construída a primeira sinagoga daqui, no século 16). Após vender o entreposto de Nova Amsterdã para os ingleses, o local seria batizado com o seu nome atual, Nova York.
Saiba mais
Livro
Olinda Restaurada – Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1645, Evaldo Cabral de Mello, Topbooks, 1998
Aborda as vertentes econômica, política, social e militar do período da ocupação holandesa.
FONTE: AVENTURAS NA HISTÓRIA